Por Maria J. Paixão*

Revista Sábado, de 1 de setembro de 2024

 

No início de agosto, as ruas da Sérvia foram inundadas por um protesto massivo contra uma mina de lítio projetada para a região de Jadar. O projeto havia sido cancelado, em 2022, precisamente na sequência de uma onda de protestos que percorreu o país. O governo sérvio voltou atrás na decisão de revogação da licença depois de ter assinado um memorando de entendimento com a União Europeia, estabelecendo uma parceria estratégica sobre matérias-primas, cadeias de valor de baterias e veículos elétricos.

O projeto mineiro está atribuído ao consórcio britânico-australiano Rio Tinto – a segunda maior empresa de metais e mineração do mundo. A mina projetada destruiria 800 hectares de floresta e terras agrícolas, ameaçando deslocar centenas de famílias e contaminar severamente as águas e os solos. Uma coligação alargada de especialistas sérvios e europeus tem-se oposto ao projeto devido à dimensão e irreversibilidade dos danos projetados. Não obstante, apesar dos alertas da comunidade científica, da oposição irresoluta das comunidades locais e da solidariedade de uma grande parte da população, o governo sérvio e a União Europeia afirmam-se comprometidos com o desenvolvimento do projeto.

Na União Europeia, a corrida ao lítio (e a outros minerais, como o cobalto ou o cobre) tem inaugurado uma nova fase da política europeia: sobretudo por motivos estratégicos de segurança, os líderes europeus – e, diga-se, os líderes das grandes indústrias europeias – pretendem assegurar parte do fornecimento de minérios internamente. Esta estratégia tem sido propagandeada como um imperativo da transição energética necessária para responder à emergência climática: uma vez que a eletrificação das nossas sociedades exigirá grandes quantidades de minerais, a mineração haverá de retornar ao Velho Continente. Ora, esta estratégica está a fazer ressurgir em solo europeu algo mais: a resistência popular e a luta pela terra.

Da Sérvia ao Barroso, a luta pela terra contra a mineração reemergiu no Centro do sistema mundial. Ao longo das últimas dezenas de anos, a estratégia dos países e empresas europeus havia sido a externalização da mineração para territórios da Periferia, como o Chile, o Congo ou a Argentina. A estratégia era ótima: não só os minérios eram obtidos a baixo custo (normalmente, com recurso a trabalho forçado ou factualmente escravo), como ainda se estancava a agitação interna, deslocando para regiões longínquas os danos ambientais e as massivas deslocações de comunidades. A inversão desta estratégia é um excelente indicador do declínio acentuado em que se encontra o modelo de globalização neoliberal que se agigantou nos finais do século passado.

Sobretudo depois da pandemia de Covid-19, as potências europeias viram-se forçadas a reconhecer que os mercados globais não são suficientemente seguros e que a desindustrialização europeia do último meio século se mostra catastrófica em períodos de crise global. Mas a projetada re-internalização das atividades extrativas traz acoplada a si a luta camponesa e indígena pela terra, que tem sido travada nessas terras longínquas pela vanguarda dos movimentos sociais globais.

Agora que essa luta chega cá, tornam-se mais evidentes que nunca as contradições do nosso modelo socioeconómico e, sobretudo, da sua transposição para a denominada "transição energética". O estilo de vida experienciado pelas populações do Centro foi carregado às costas das populações marginalizadas da Periferia, espoliadas das suas terras e dos seus recursos. Agora que se pretende reorganizar o modelo extrativista global, vemo-nos confrontados com a questão quintessencial de decidir que estilo de vida nos podemos permitir.

Embora a extração de minerais seja, de facto, essencial para a transição energética, a dimensão dessa extração e a forma como ela será realizada não são, como nos pretendem fazer crer, unívocas. No caso da Sérvia, por exemplo, o Chanceler alemão e o Vice-Presidente da Comissão têm-se empenhado em garantir aos grandes fabricantes de automóveis europeus acesso exclusivo ao lítio sérvio. Não há, portanto, nenhuma preocupação com a insustentabilidade do modelo de transporte individual, mas apenas o "esverdeamento" aparente de um modo de organização social profundamente incompatível com o equilíbrio ecológico e o bem-estar das pessoas.

Além disso, o modo como os projetos mineiros têm sido pensados reproduz dinâmicas desiguais de subjugação. O caso da Sérvia, à semelhança do que se passa nas serras do Barroso, é exemplar. A exploração é atribuída a um consórcio estrangeiro, sediado em economias francamente mais fortes que a economia onde se pretende desenvolver a exploração. Esta desigualdade é o ingrediente secreto de qualquer grande "negócio" para as corporações multinacionais: estabelecer-se-á uma relação de dependência e os capitais gerados com a exploração mineira serão expatriados para as economias de origem, deixando o país de extração, não só confrontado com severos problemas ambientais e de saúde pública, como ainda depauperado. Ademais, os consórcios estrangeiros procuram, desde cedo, desestabilizar as comunidades locais, utilizando estratégias de manipulação, aliciação e intimidação, desta forma tentando conter qualquer oposição que possa surgir.

Trata-se de um modelo extrativista puro, que tudo destrói e nada deixa, destinado a alimentar uma transição imaginada, pensada ao pormenor para não mudar fundamentalmente nada. Ganham e perdem os mesmo de sempre e a fundamental incompatibilidade entre o modelo socioeconómico e o equilíbrio ecológico subsiste. Numa Europa que se planeia para o futuro com base num mapa de zonas de sacrifício, a resistência ao extrativismo começa a ganhar ímpeto. É nas terras sérvias e barrosãs, marcadas para ser sacrificadas, que se irá escrever o nosso futuro coletivo.


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Maria J. Paixão é Investigadora na área do Direito do Clima e ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais.